
Dona do título de primeira doutora gastrônoma do Brasil, a brasiliense radicada na Serra Tainá Zaneti também é a "alma criativa" — como ela mesma define — da vinícola Madre Terra, em Flores da Cunha. Lá, cria receitas, harmonizações e pratos que refletem a essência brasileira por meio de ingredientes típicos.
Nascida e criada em Brasília, começou a estudar gastronomia no Instituto de Educação Superior de Brasília e, ao mesmo tempo, Gestão do Agronegócio na Universidade de Brasília (UNB). Depois, se especializou em tecnologia de alimentos, fez mestrado em agronegócio, também pela UNB, e doutorado em desenvolvimento rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tainá foi também a primeira mulher a se formar enóloga na primeira turma do curso de Viticultura e Enologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Na vinícola da família, em Flores da Cunha, é responsável por criar e executar menus harmonizados, além de integrar a equipe de sommeliers e enólogos que avaliam os 14 rótulos produzidos, divididos em quatro linhas.
Pioneiro: Como surgiu seu interesse pela gastronomia?
Tainá Zaneti: Tenho um lado da família de agricultores. Meu pai é descendente de imigrantes italianos e, por outro lado, a minha mãe é urbana, nascida em Porto Alegre, com uma família bem brasileira, que tem raízes africanas, indígenas, espanholas, portuguesas. Eu sou um pouco dessa mistura de Brasil. Isso tem muito a ver com a minha trajetória profissional. Eu tento trazer o Brasil para dentro dos nossos pratos e vinhos.
Eu sempre cozinhava com a minha avó materna e ela sempre cozinhava muito bem, mas era uma mulher muito prática. Então, eu a via cozinhando e pensava: eu quero cozinhar tão bem quanto a minha avó.
Por que decidiu estudar gastronomia e gestão do agronegócio ao mesmo tempo?
Quando eu tinha uns 16 anos, eu vi um programa de televisão na BBC, que mostrou um prato que se chamava beef bourguignon, um prato típico da Borgonha. Nessa reportagem, eles mostravam como esse prato refletia toda uma questão cultural, social e agrícola. Eu achei incrível que a partir de um prato de comida, você pudesse falar sobre tantas coisas.
Eu decidi que queria fazer gastronomia, só que isso foi há 20 anos. Ninguém falava em fazer gastronomia. Meus pais ficaram muito apavorados. Então, fizeram um combinado comigo: "você vai fazer gastronomia, mas você vai fazer alguma coisa séria".
Na gastronomia, ninguém falava de agronegócio e agricultura. Essa ligação, que hoje a gente consegue ver de maneira muito facilitada, não era tão óbvia assim. Eu sempre falo que os ingredientes chegavam como "alienígenas" para a gente cozinhar. Não tinha um espírito crítico de como aquilo tinha sido feito.
No agronegócio era a mesma coisa. Não se discutia o que que ia ser feito a partir do ingrediente. Eles nem chamavam de ingrediente, mas de commodity.
E como unir as duas coisas?
Se eu planto alguma coisa comestível, eu vou transformar isso em comida. Eu comecei a ficar muito intrigada com essas questões. E, então, eu descobri o movimento Slow Food. Descobri que existia toda uma corrente de pesquisa teórica e aí começou a minha carreira. Eu brinco que eu entrei na gastronomia para abrir um restaurante e acabei desenvolvendo uma linha de pesquisa.
Eu fiz uma especialização em tecnologia de alimentos na UNB e ali a minha professora me ensinou a pensar o alimento como cultura. E eu comecei, então, a entender que o alimento tinha uma trajetória, um caminho e que esse caminho era feito por pessoas. Então, eu tinha que entender a cultura humana pra entender como que esse alimento ia se transformar.
A partir desse entendimento, você desenvolveu uma linha de pesquisa que seguiu até o doutorado?
Eu fiz meu mestrado em agronegócio, no programa de pós-graduação da UNB, onde comecei a entender os ingredientes nativos como bens singulares. Então, fui estudar construção social de mercados, sociologia econômica e a economia da singularidade para entender como os ingredientes se tornam bens de consumo e até de luxo.
Depois, fiz meu doutorado na UFRGS, no programa de pós-graduação em desenvolvimento rural. Ali, estudei a relação entre os chefes, os agricultores e os consumidores a partir do uso desses ingredientes que eu chamo de singulares. Desenvolvi a teoria da trajetória social dos ingredientes e foi muito interessante, porque a gente conseguiu entender um novo conceito de gastronomia. Uma gastronomia que vai desde o preparo da terra até o modo como ela é consumida e até descartada.
Eu defendi minha tese em 2017 e sou a primeira gastrônoma doutora do Brasil.
Como aplicar o conhecimento acadêmico no mercado da gastronomia?
Aqui na Madre Terra, sou a alma criativa. Não tenho um cargo na empresa, o que eu faço é realmente criar as coisas. Foi muito importante ter a parte da pesquisa, porque me trouxe muito esse olhar para o Brasil, porque a minha pesquisa sempre foi focada nos ingredientes brasileiros.
Quando eu vou montar um cardápio, eu penso em que Brasil que eu quero mostrar. Que Brasil eu quero mostrar pras pessoas, especialmente aqui na Serra, num ambiente que a gente tem muita influência europeia, especialmente italiana. O que eu posso contribuir enquanto pesquisadora?
Como eu posso trazer isso pra cá e ajudar na formação de mercados desses ingredientes que, muitas vezes, estão escondidos ou que não são valorizados o suficiente.